Tributo a uma Amizade - Roteiro Audiovisual e Escrita Criativa

28/09/2020

Tributo a uma Amizade


Recolhendo Castanhas” – William Adolphe-Bouguereau (1825-1905) 



Conheço o real sentido da palavra amizade não porque fui uma grande amiga, mas porque a melhor delas fez parte da minha vida. Uma parceria fantástica, sempre pronta a participar de qualquer maluquice que eu inventava. Éramos uma dupla dinâmica, uma inventando ideias extravagantes e a outra fazendo todo o possível para que as loucuras se materializassem.

De vez em quando fazíamos um fogo de chão. Era nosso ritual particular, um momento de convívio e amizade longe dos problemas que eu tinha em casa. Eu partia de manhã rumo à casa dela (era minha segunda vizinha, logo após a casa de minha avó). Quando eu chegava, a primeira coisa que fazíamos era uma lista de tudo o que fosse necessário para realizar nosso fogo de chão. Eis aí o despertar do meu entusiasmo por listas!

O pai dela tinha um pequeno reboque, o qual deixava parado na frente da casa, já vazio e limpo para que pudéssemos colocar nossas coisas. Levávamos tudo o que era possível: carne já picada, sal e tempero verde. Pratos e talheres, água e um pano de prato. Fósforos e paus de forquilha para pendurar a panela sobre o fogo. Refrigerante ou suco para beber…

Depois de conferir se tudo o que constava na lista estava também no reboque, partíamos. Eu o puxava na frente e minha amiga, nos trechos necessários, o empurrava atrás enquanto nos dirigíamos ao potreiro seguindo por uma estradinha de chão. Poucos metros depois da casa dela, os gansos nadavam num açude lamacento. Passando dali, havia um pequeno bosque, onde as corujas buraqueiras nos espiavam detrás dos tocos caídos, perto de suas tocas.

Logo depois estendia-se um imenso descampado, onde havia apenas uma grande árvore. Era ali que estacionávamos o reboquinho cheio de tralhas. Minha amiga selecionava um toco de árvore para servir de banco e então estendia um pano sobre a grama, onde seria a mesa. Eu cravava os dois paus de forquilha no chão, transpassando o outro já com a panela pendurada. Em seguida começava a juntar gravetos, que encontrávamos aos montes ao redor da árvore e, por fim, acendia o fogo.

O menu geralmente era carreteiro. Enquanto o mesmo cozinhava, conversávamos. Lembro-me de sugerir a ela que começasse a escrever um diário (coisa que eu já fazia), para anotar seus pensamentos e segredos, especialmente os segredos e compartilhá-los num fogo de chão futuro. Se não me falha a memória, num deles, posterior, assim o fizemos.

Eu também acreditava que nossa amizade deveria ser melhor celebrada. Então expus um plano um pouco mais audacioso, fundar um Clube das Amigas. Neste clube, cada participante teria uma carteirinha e haveria uma lista de frequentadores. Em cada feriado do ano algum tipo de “evento” seria realizado. Poderíamos até desenhar o calendário de eventos e colocá-lo na parede, como parte da decoração!

Mas eis o mais audacioso, o dito clube teria uma sede, que seria uma casa na árvore. Eu até já tinha escolhido a árvore! (Não sei se a pequena laranjeira aguentaria, é uma pena não ter fotografia dela). Minha amiga adorou a ideia e logo sugeriu um evento de inauguração. E como todo clube, eu reservava uma área vip, é claro, onde só as sócias majoritárias, eu e ela, ficaríamos.

A minha esperança, na época, era que com uma casa na árvore, mamãe nos deixaria dormir fora e poderíamos conversar até altas horas e observar corujas a noite inteira. Grandes planos de uma mente inocente! Eu sabia que uma casa na árvore era um empreendimento grande para duas crianças. Se papai não ajudasse a construí-la devido a situação em que se encontrava, eu pediria a um dos meus tios que morava perto e se ele também não ajudasse, eu mesma começaria a tal casa. Não haviam limitações para os meus planos.

Com o carreteiro pronto, comíamos ali mesmo, vendo as vacas pastando ao nosso redor tentando aproveitar uma parte da sombra que a árvore projetava. Depois de longas horas no campo, recolhíamos nossos pertences e voltávamos para casa, empurrando o pequeno reboque de volta. O pai de minha amiga sempre agradecia pelas sobras, as quais desfrutava com alegria.

Creio que fizemos o fogo de chão umas duas ou três vezes. Numa delas, ventava muito e foi hercúlea a tarefa de terminar de cozinhar o carreteiro. Por fim, o arroz ficou “al dente”. O clube das Amigas nunca saiu do papel, pouco tempo depois tivemos de fugir de casa por causa da esquizofrenia de papai. Morando em outra localidade, eram raras as ocasiões em que podia ver minha amiga e, por fim, a vida adulta e seus compromissos acabaram por selar nosso distanciamento. Da minha parte, permanece a amizade, mesmo que em memória e a gratidão por ter tido em minha vida uma amiga como V.

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