Doce Veneno - Roteiro Audiovisual e Escrita Criativa

17/08/2020

Doce Veneno

 

Henriëtte Ronner-Knip, Kitten’s Game, (ca. 1860)

Romualdo vivia sozinho. Desde que se tornara cadeirante, após um acidente de carro, transformou a ampla sala da frente em escritório, cozinha e sala de estar. Tinha ali sua mesa e materiais de trabalho, a televisão e seus livros, um frigobar e um armarinho de madeira onde guardava os mantimentos. Almoçava e jantava ali. Saía daquele ambiente apenas para ir ao banheiro e dormir, na sala imediatamente ao lado.

A luz natural daquele ambiente provinha de uma grande janela situada ao sul, com vistas para o gramado do vizinho. Romualdo observava a paisagem. Duas crianças brincavam alegremente com o gato do vizinho. Maldito gato. Romualdo odiava aquele animal. Não podia compreender como as pessoas eram capazes de amar um animal preguiçoso, bagunceiro e que solta pêlos por onde passa. Além disso, aquele felino em especial era capaz de destruir qualquer organização.

Certa feita, ao retornar do banheiro, Romualdo deu de cara com o bichano dormindo em cima de seus papéis na mesa de escritório. Berrou com o animal, que, assustado, pulou da mesa, mas não sem espalhar os papéis e anotações por toda a sala. Foi um sacrilégio para Romualdo ajuntar a papelada. Como odiava aquele gato.

O gato, ao contrário, parecia amá-lo. Seguidamente amanhecia esticado sobre a soleira da janela, que ficava semi aberta, tomando sol. Ronronava carinhosamente quando Romualdo se aproximava. O homem, porém, era incapaz de amar o felino. Logo que o alcançava, dava-lhe um bofete para espantá-lo. 

Quando finalmente deixou a paisagem dirigiu-se à mesa de escritório, localizada no outro lado do imenso salão. Notou, enquanto se dirigia até o outro lado, uma trilha de formigas que também atravessavam o cômodo até um pequeno orifício no rodapé atrás de sua mesa. Acompanhou a trilha, cuidando para não atropelar nenhuma formiga. 

Se algum animal deveria ser admirado, que fossem as formigas, pensava. Eram trabalhadoras incansáveis, como ele fora a vida inteira. Carregavam toda espécie de materiais, desde cadáveres de outros insetos até migalhas de alimento, limpando o ambiente. Eram organizadas e elegantes. Romualdo contemplava aquela marcha ritmada de pequenos soldados quando a campainha tocou. 

Era a empregada. Uma menina de catorze anos incompletos. Romualdo sabia ser ilegal contratar uma menor de idade, mas o fez depois de a mãe da menina, divorciada e com problemas financeiros, implorar que lhe desse uma chance. E fosse o acaso ou não aquela foi a única empregada com quem se entendeu. Fazia exatamente o que ele pedia e não mexericava em suas coisas, ao contrário das outras. Por causa de sua timidez extrema, quase não falava, o que agradava muito Romualdo, que detestava conversas fúteis. 

Enquanto ela varria o imenso cômodo Romualdo foi até o banheiro. Ao retornar flagrou-a sorridente brincando com o gato em seus braços. Estavam na frente da janela, o sol batia contra os dois revelando os pêlos do animal esvoaçando em torno dela e se espalhando pela sala. Irado com a visão, Romualdo gritou:

- Largue este animal imundo!

Assustada a menina deixou cair o gato, que de um pulo encontrou a saída pela janela. Já ela permaneceu ali, petrificada, com os olhos arregalados. Romualdo, passado algum tempo de constrangedor silêncio, pronunciou mansamente algumas palavras.

- Está tudo bem. É que eu não gosto de gatos. Disse o mais calmamente possível. 

Era a primeira vez que gritava com ela. Nunca houvera antes uma troca de farpas entre os dois. A menina, toda sem jeito, baixou a cabeça e continuou seus afazeres. Romualdo, no entanto, percebeu que a tinha assustado. Ela limpava o móvel encolhida e cabisbaixa, vez ou outra lançando um olhar de receio. Aquela era a única empregada com quem já se entendera e também a mais barata que já tivera. Se ficasse com medo talvez não retornasse mais. Precisava resolver esta questão. 

Dirigiu-se até a mesa do escritório e começou a revirar alguns papéis quando viu, pela janela, o gato brincando no gramado do vizinho. Aquele animal era a razão de toda a confusão. Como gostaria de livrar-se dele! Pensou por alguns instantes no assunto, a ideia se repetindo em sua mente, livrar-se dele, livrar-se dele, livrar-se dele. De repente chamou a menina. 

- Carla, poderia vir aqui um pouquinho? Falou delicadamente. 


A menina aproximou-se cautelosa, claramente receosa.

- Eu preciso de um imenso favor seu. Disse enquanto anotava a palavra “chumbinho” em um pedaço de papel. Você poderia ir até a mercearia aqui da esquina e me trazer o que está escrito aqui? É só entregar o bilhete ao atendente. Diga que é uma encomenda para mim.

A menina, tímida como um gato arredio, fez que sim e pegou o papel das mãos de Romualdo, que em seguida abriu a gaveta e alcançou-lhe algum dinheiro. 

- Com o dinheiro que sobrar quero que compre algo para você, um doce talvez. É um presente. Disse-o e tentou sorrir, na tentativa de amenizar a situação.

O rosto da menina pareceu aliviar-se um pouco. Logo saiu para cumprir a tarefa. Minutos depois, quando retornou, deixou dois embrulhos sobre a mesa. Um continha o granulado cinza encomendado e o outro uma rosquinha recheada com creme de leite. Romualdo chamou-a novamente. 

- Mas o doce era pra você.

- Sim, respondeu a menina. Com o troco pude comprar dois, este é seu. 

- Oh, obrigado! Disse meio sem jeito. Aceitou o doce para não cometer nenhuma desfeita, já que parecia ter recuperado a confiança da menina. 

À noite, logo depois dela sair, Romualdo partiu a rosquinha ao meio. Uma das metades preencheu cuidadosamente com o veneno e depositou-a sobre a soleira da janela semi aberta. A outra metade guardou em seu armarinho. 

Na manhã seguinte, preparou sua xícara de café e então vasculhou rapidamente com uma das mãos o armarinho em busca de torradas. Não as encontrou, mas esbarrou acidentalmente no que sobrara da rosquinha. Pegou-a e dirigiu-se até à janela. Esquadrinhava o gramado em busca do cadáver do gato. Não o avistou. Deu uma boa mordida na rosquinha, depois sorveu um grande gole de café. 

Deu mais uma boa olhada por todo o gramado. Nada. Comeu mais um pedaço da rosquinha e bebeu outro gole de café. Sentiu uma náusea, provavelmente o recheio não lhe caíra bem, era muito doce para o seu paladar. Levantou a xícara mais uma vez para tomar outro gole de café quando viu o gato, vivo, pulando atrás de uma borboleta. 

Seu olhar foi instintivamente de encontro à soleira da janela, onde depositara a metade envenenada da rosquinha. Restavam apenas farelos. Como era possível? Sentiu uma pontada no estômago. Notou, então, algumas formigas mortas em torno dos farelos. Tinha mais delas no chão, uma trilha de cadáveres que se iniciava ali e seguia pelo salão até o armarinho. 

Curioso, foi verificar. Quando abriu o armarinho, viu formigas mortas por toda parte, inclusive no local de onde tirara a rosquinha. Um terrível pensamento atravessou-lhe a mente. Atordoado, abriu rapidamente o pedacinho da rosquinha que ainda tinha nas mãos. O recheio também estava cheio de cadáveres. Apavorado, sentiu suas tripas se contorcendo, sua visão ficando embaçada. Tentou ainda alcançar o telefone sobre a mesa de escritório, mas inclinou-se muito e caiu da cadeira de rodas. No chão a escuridão o apanhou.


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