No Caminho da Serpente - Roteiro Audiovisual e Escrita Criativa

05/08/2021

No Caminho da Serpente


"A cabeça da Medusa" (1612) Pieter Paul Rubens


Era um dia de sol escaldante do mês de dezembro, daqueles dias em que o calor imprime sua vibração sobre a paisagem, transfigurando a visão. A família de agricultores preparava-se para iniciar mais um dia na colheita do tabaco. O pai amarrava a junta de bois sob uma esparsa sombra oriunda de uma árvore semimorta. A mãe ajudava os filhos a descerem da carroça. O diarista, que auxiliava a família vez ou outra, já estava colhendo as primeiras braçadas de tabaco, deixando apenas os talos nus.

As duas crianças foram deixadas sob a sombra da carroça, que se projetava numa das laterais, alcançando a estrada de chão batido. A estrada estava coberta com uma grossa camada de pó, sobre o qual ambos brincavam desenhando figuras. Era a única diversão que dispunham, já que não podiam brincar no meio da lavoura, pois o calor escaldante e o inço que forrava o chão poderiam esconder cobras e outros animais peçonhentos.

Essa ameaça era mais que suficiente para a menina permanecer alegremente na beira da estrada, longe do mato. Cobras a assombravam. Desde o dia em que vira sua tia correndo de casa com o bebê no colo, fugindo de uma serpente que encontrara no quarto da criança, seu medo tornou-se pavor. A imagem fantasiosa que criara da serpente engolindo o bebezinho não saía de sua mente, por isso evitava a todo custo encontros com as tais feras rastejantes.

À meia-tarde a mãe retornou da lavoura e entregou-lhe a chave da casa.

- Vai buscar água. Esse garrafão acabou, mas tem outro na geladeira.

A menina sentiu seu coração disparar.

- Não pode ser o Gustavo? Perguntou.

Não, ele não consegue carregar o garrafão. Respondeu a mãe. Vai logo que o sol tá muito quente e a gente precisa de água. A menina tentou ainda convencer o irmão a acompanhá-la, mas o menino se negou. Aterrorizada recorreu à mãe.

- Vai junto só até ali mãe. Pediu encarecidamente.

- Não, eu tenho que voltar pra lavoura, vai logo. Respondeu a mãe.

Temendo pelo que haveria de passar, a menina, então, suplicou com lágrimas nos olhos.

- Por favor mãe, só até ali. É tão pertinho!

A mãe, já sem paciência, precisando retornar à lavoura, sentenciou:

- Ou tu busca a água ou vai apanha. A menina, com o coração apertado, se viu deixada à própria sorte.

O que tanto a atemorizava era um pequeno trecho de cerca de quinhentos metros de estrada de chão cercado de água pelos dois lados. De um dos lados havia o pequeno açude do pai, do outro, o imenso lago da avó. A grossa camada de pó que cobria o trajeto denunciava os perigos que a menina tanto temia, os terríveis rastros deixados pelas cobras.

Alguns eram estreitos e compridos, atravessando quase em linha reta a estradinha de pouco mais de um metro de largura. Outros eram fininhos, indicando filhotes, que ziguezagueavam sobre o pó até desaparecerem na outra margem. Mas havia também os grossos rastros de serpentes adultas, que faziam voltas sobre o pó da estrada.

A menina, parada em frente à estradinha como quem está em transe, recordava-se dos inúmeros pesadelos que tivera com as feras rastejantes. Imaginava-se atravessando rapidamente o caminho quando uma serpente saltasse da gramínea lateral, bloqueando sua passagem. Tentaria recuar, mas outra já estaria esperando atrás dela. Cercada ali, no meio do pó, encontrariam mais tarde os rastros de sua derrota.

Pensava nessas coisas quando ouviu a mãe gritar:

- Vai logo, se tu não busca a água, tu vai apanhar. Sabia que a promessa era séria, precisava continuar.

Lembrou-se que a avó estava em casa. A velha senhora era muito compreensiva e certamente a acompanharia quando retornasse, de forma que não precisaria atravessar sozinha aquele trajeto outra vez. Esse pensamento trouxe consolo ao seu coração. Bastava então que atravessasse o caminho sozinha uma única vez.

Sendo assim, começou os preparativos. Guardou a chave da casa no bolso de sua bermudinha surrada. Observou mais uma vez o caminho repleto de sinais ameaçadores. Perscrutou a gramínea das beiradas para ver se não havia sinal de alguma serpente à espreita. Tudo parecia limpo. Deu um passo para trás, preparando-se para disparar, quando percebeu algo se movendo no outro lado. O que quer que fosse fazia a gramínea tremelicar.

O coração da menina congelou. Já estava pronta para voltar e anunciar o perigo à mãe quando a criatura se revelou, atravessando rapidamente a estradinha. Era um preá completamente inofensivo. Para recuperar-se do susto respirou fundo algumas vezes. Já fazia algum tempo que estava ali, se não atravessasse logo o trajeto, receberia a prometida surra. Deu mais alguns passos para trás, fez uma prece pedindo que não se deparasse com nenhuma serpente durante a travessia e então, com os olhos semicerrados, disparou a correr.

Segundos mais tarde estava parada do outro lado. Seu coração batia tão forte que poderia arrebentar o peito. Tinha conseguido. Era certo que tinha batido algum recorde de corrida vigente na época. Verificou rapidamente se alguma serpente a tinha seguido. Nada. Aos tão temidos rastros na poeira da estrada acrescentavam-se apenas as suas compridas e desesperadas passadas.

Sentia agora o alívio dos que suportam grande provação, o refrigério dos que sobrevivem a perigos de morte. Tinha atravessado o tão temido caminho. Estava a salvo. Já ia virar-se para continuar quando percebeu algo reluzindo no pó, no início do trajeto, exatamente de onde disparara. Colocou a mão no bolso. Um mal estar começou a tomar conta de seu pequeno corpo, um amargor preencheu sua boca. O bolso da bermuda estava furado e o que reluzia no pó da estrada era a chave da casa.




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